21/01/10

O Homem sem Sombra

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O Homem sem Sombra

Tentando não interromper a ligação entre pensamentos, acomodou o pequeno caderno de capa negra debaixo do braço esquerdo e enfrentou o caminho de volta ao apartamento vazio que nem a ele esperava.
Deixou-se arrastar pelos seus pés já cansados, quase não se dando conta do que fazia, o que o levou a esbarrar contra uma mulher que passava. Não se tratara apenas de um encontrão de ombros, ele fora realmente contra ela, e, no entanto, a mulher não o olhava nos olhos. Agarrava a cabeça como se isso a refizesse do choque e olhava em volta desconcertada.
- Desculpe – murmurou atabalhoadamente.
A mulher não lhe respondeu. Continuava a olhar em volta, desta vez algo encolhida, e ele reparou num matiz avermelhado nas suas orelhas. Por fim, ajeitou a mala no ombro com uma nova energia, abanou a cabeça, como quem enxota um insecto particularmente enervante e continuou caminho, obrigando-o a desviar-se para que não embatessem de novo. Por um momento ficou a ver, atónito, a figura da mulher enquanto esta se afastava. Poderia ser cega? E se fosse esse o caso, porque olhara em volta? O mais provável era que fosse apenas descortês.
Continuou o seu caminho, ainda com a estranha mulher no pensamento. Certamente fora um mero acidente. A questão que se punha constituía em quem estava a loucura, na mulher que se recusava a vê-lo ou nele próprio? Já não confiava na sua mente o suficiente para responder com segurança. Começou então a reparar nas pessoas que por ele passavam, nessas criaturas que se esforçava, desde que se recordava, por ignorar, pela desesperante semelhança que tinham com ele próprio, recordando-lhe a insignificância de tudo o que era significante. Uma e outra vez, encontrava apenas a ausência de um olhar, de um qualquer sinal de reconhecimento, de empatia ou mesmo de um qualquer reflexo que pudesse indicar que ele estava ali, que, de facto, existia e era real. A sua capacidade de pensar claramente diminua ao mesmo tempo que o seu ritmo cardíaco aumentava. Atingira-o um pressentimento absurdo que se esforçou por afastar rapidamente, mas os pressentimentos raramente se deixam afastar, existem como vestígio de uma anterior percepção. Precisava de algum tipo de prova que pudesse mostrar a si mesmo a insensatez de tal pressentimento. Achando já que nada tinha a perder, fixou a sua atenção num transeunte alheado que passava à sua direita. O homem caminhava de olhos vidrados e mãos nos bolsos, provavelmente tão acostumado a percorrer aquele mesmo caminho que já o fazia de forma automática. Se pensava algo de extrema profundidade ou deixava-se perder em pequenas inutilidades, era difícil adivinhar. Talvez não pensasse de todo. Sempre se questionara se esse estado era possível no ser humano.
Subitamente consciente de cada movimento do seu corpo nervoso deu três passos de corrida e esticou o braço para tocar no ombro do pequeno homem. Foi com uma onda de entusiasmo que o viu parar e olhar para o lado, directamente na direcção de um ponto no seu pescoço que lhe ficava à altura dos olhos vidrados, entusiasmo que se desvaneceu quando o homem seguiu em frente... Como se não o tivesse visto. Essa era, de facto, a expressão correcta. As pessoas não o viam, ainda que ele fosse capaz de as ver. Soltou uma insonora gargalhada nervosa. Toda aquela situação era ridícula, ele estava a ser ridículo. Já não era sequer capaz de entender o comportamento dos outros, provavelmente não o observara com suficiente objectividade. Isto oferecia-lhe uma momentânea sensação de felicidade, apesar de tudo, pois punha-lhe também em mãos um desafio para os seguintes dias, o de tentar compreender este novo fenómeno de distanciação que, por não poder pertencer aos outros, pertencia, inevitavelmente, a si mesmo.
O céu escurecia rapidamente numa mistura de tons de vermelho mas, distraído a olhar para a calçada, não se deu conta senão ao chegar á porta principal do seu edifício. Hesitou, já com a chave estendida na mão direita, e olhou para cima. Nem devagar nem depressa percorreu o céu com o olhar, em busca de algo que já nem ele sabia reconhecer, algo que se relacionasse de alguma forma com a beleza simples e inquestionável de um pôr-do-sol de Outono. Nada. Já sabia que assim seria, não sabia, no entanto, o porquê de continuar a procurar impressões que lhe eram estranhas.
O homem a quem não viam atirou-se para o sofá e olhou para o ecrã negro do televisor. Alguém verdadeiramente insensível seria capaz de questionar a sua sensibilidade? Levantou a mão direita e admirou-a. Fora aquele em que se tornara? Aquele era quem tinha sonhado ser? As linhas na palma da sua mão não chegavam nunca a tocar umas nas outras. Alguma vez havia possuído a capacidade de sonhar de forma ingénua, sem se preocupar com as implicações efectivas dessa acção? Provavelmente sim, mas já não se recordava, pelo que não podia igualmente recordar como fazê-lo.
Os seus dedos acariciaram a lombada de um livro pousado a seu lado. Desde que aceitara a leitura como trabalho, deixara de achá-la tão relaxante como antes. Ao invés de um refúgio para o trabalho tornara-se no próprio trabalho. Agora havia poucos livros que realmente o confortassem, chegando a calcorrear livrarias durante horas na procura de um autor sem nome que pudesse ainda esconder-se nas prateleiras. Era, contudo, rara a ocasião em que abandonasse uma livraria de mãos vazias. Isto era apenas uma banalidade, no entanto. Ouvira já outros queixarem-se do mesmo problema. Não tinha importância.
Sentia-se exausto, ainda que pouco tivesse feito todo o dia, mas não foi capaz de adormecer. Então pensou. As horas arrastavam-se, sabia-o pois conseguia ouvir o som tortuoso dos ponteiros do relógio de pulso pousado a seu lado. Estava demasiado cansado até para pensar, apercebeu-se, então deixou de controlar o fio de pensamentos e deixou-os seguir para onde bem lhes aprouvesse. Surgiu-lhe um rosto, mas não sabia identificá-lo.
«Quem?» A questão ressoou nas paredes vazias. Apercebeu-se de súbito que aquela era a segunda palavra que dizia em todo o dia. Talvez por isso tivesse sentido necessidade de a proferir em vez de a pensar apenas.
«Quem?», voltou a perguntar. O som da sua própria voz soou-lhe agradável, era um som humano, limpo, racional. Tinha saudades desse som, do som que fazem as pessoas quando falam não apenas para falar, para fazer ruídos comunicativos, mas para dizerem algo que tem de ser dito. Em toda a vida tinha conhecido poucas pessoas que produzissem esse tipo de som. Ninguém lhe tinha respondido, no entanto. O rosto tinha já desaparecido da sua mente. Teria sido um homem, uma mulher? Quem? Era raro pensar em quem quer que fosse, ninguém fazia parte da sua vida.
Os seus olhos abriram-se subitamente para a escuridão do quarto. Ninguém fazia parte da sua vida. Poderia ser verdade, mesmo para alguém como ele, estar vivo e não ter uma única pessoa que o soubesse? O seu peito doeu-lhe pela primeira vez nos últimos anos. Ele não estava só, afinal, ele existia só. Como poderia então saber se existia de facto? A única criatura que acreditava nisso era ele próprio. Que provas tinha de que a sua mente era real se nem sequer sabia se o seu corpo o era?
«Penso logo existo», citou para si mesmo com insegurança. Neste momento apercebeu-se vagamente de que estava a começar a adormecer, por isso os seus pensamentos tornavam-se menos lúcidos e faziam-lhe menos sentido. Aconchegou-se na almofada e sorriu levemente. Estava ali, pensava, portanto era certo que existia. Ou não?
¬
*

Um pé atrás do outro e com a cabeça no chão, o homem a quem não viam fazia o caminho de regresso ao seu pequeno apartamento. Não sabia por onde caminhava nem com quem se cruzava porque tudo na sua mente era uma névoa cinzenta e densa.
Por um momento o seu joelho quebrou-se e perdeu o equilíbrio, deixando-se cair na calçada molhada. Deixando as mãos despidas tocarem o chão, despertou o suficiente para olhar em volta lentamente, para se deparar com uma cidade escura e infeliz, conquistada pelas chuvas violentas de Inverno. Os olhos doeram-lhe a olhar para os céus, naquele momento tão injustamente semelhantes aos seus pensamentos, negros e enevoados por forças grandes demais para combater. O homem quis enrolar-se ali, naquele local da fria calçada e não mais acordar. Ele tinha ainda consciência de que esse pensamento era infantil e embaraçoso. Mas o que importava isso? Não havia ninguém que pudesse dizer-lho ou rir-se da sua infeliz figura caída no chão imundo, despojada de dignidade humana, ninguém que levantasse o seu corpo gélido e encharcado, e lhe oferecesse um casaco para tapar os braços descobertos ou uns sapatos para os seus pés descalços. Na verdade, não havia ninguém.
O homem arfou várias vezes, sentindo que o coração lhe falhava, de tão apertado estava, como se fosse grande demais para o seu peito descarnado. Como é que se chorava? E porque não conseguia ele fazê-lo?
Uma sombra foi-se aproximando lentamente. A primeira coisa que pôde ouvir foram os seus passos na escuridão, lentos mas seguros. Quem se passearia nas ruas àquelas horas da madrugada e com a chuva que caía? Isto é, quem para além dele mesmo? A sombra aproximou-se e passou por ele, não deixando nunca de ser isso mesmo, uma sombra. A sua postura era curvada e insegura, cravada de um peso evidente, os seus olhos mortiços não tinham brilho, ocultados pela aba larga do chapéu, e não levava consigo nenhum guarda-chuva, deixando-se invadir livremente pelas rápidas e grossas gotas de chuva. O homem a quem não viam agarrou-se desesperadamente às calças do indivíduo que por ele passava, não conseguindo conter-se, nem havendo mais razões para tal.
- Olha para mim! – Gritou com uma voz rouca e desusada. – Por favor, não continues! Vê-me, ouve-me! Eu estou aqui…
A sombra continuou o seu caminho ignorando por completo o homem prostrado no chão que soltava pequenos gemidos, quase semelhantes a leves prantos. – Por favor... Não continue, não por aí…
Apoiando algum do seu peso ao poste de um candeeiro de rua apagado, o homem a quem não viam ergueu-se custosamente. Este simples acto físico pareceu fazer surtir nele um efeito estimulante, e, pouco a pouco, foi-se recompondo como ser humano, erguendo-se até uma posição erecta conveniente. Os seus joelhos quebraram-se ainda uma vez mais em tom de ameaça, mas ele voltou a erguer-se. Tinha de continuar, que mais poderia fazer se não continuar?
Uma vez mais, colocando um pé atrás do outro, e concentrado na mecânica deste movimento, o homem que nunca tinha querido sê-lo continuou o seu caminho até chegar ao topo de uma falésia de areia dourada. Demorou-se a olhar para as várias construções em seu redor e por breves instantes ocupou-se com divagações sobre a incapacidade da espécie humana em deixar a natureza manter-se natural e a beleza ser aquilo que não se consegue descrever em palavras, divagações estas que afastou quase imediatamente. Naquele momento presente os seus próprios problemas pareciam ser maiores do que os do mundo e, no entanto, nunca se sentira tão pequeno e inútil. Junto à falésia, ao nível do chão, estava um pequeno estabelecimento fechado, de aspecto precário mas acolhedor. O nome estava meio apagado na placa que balançava ao ritmo das vagas marítimas próximas mas ele sabia-o bem demais. Relanceando o cais vazio e abandonado, assomado pelas chuvas e pela maré alta, o homem a que não viam olhou para o seu corpo de mulher, aquele que negara toda a sua vida, pronunciou um adeus inaudível e fechou os olhos. O negrume e o silêncio ele conhecia, no silêncio e no negrume se sentia completo e igual a si mesmo. Não precisava de palavras, nem de pessoas, nem da sua sociedade. Não precisava de nada, nem sequer de estar vivo.


(um retrato auto-biográfico de ficção)
Rebeca Neves

1 comentário:

Anónimo disse...

complexo *